Ao contrário de mim, que cresci encharcado de cultura de massa, batatas fritas sabor churrasco e feijoada de microondas, minha amiga Clarissa é filha de eruditos; foi educada entre decassílabos, sonatas e camembert. Acreditem, isso faz uma baita diferença na hora de comprar uma abóbora.
“Ali tem um supermercado, ó”, eu disse. “Por que a gente não vai na quitanda?” ela me respondeu, e já estava instalada a cizânia.“Eu acho que as abóboras do supermercado devem ser melhores”, falei. “Imagina! Na quitanda deve ser o próprio japonês que planta, num sítio, sem agrotóxicos...”, ela argumentou, fingindo que a discussão era tipo Olivier Anquier quando na verdade – os dois sabiam bem --, estava muito mais para Michael Moore.
Não sei se você compreende, mas um supermercado e uma quitanda encontram-se em pólos opostos do espectro político. Era isso que o olhar da Cla, com fúria guerrilheira, me dizia: o supermercado era de direita, códigos de barra, imperialismo ianque; a quitanda era de esquerda, papel pardo, Fórum Social Mundial, produtos orgânicos.
“Olha, Cla, eu entendo, eu também acho assim que, esteticamente, sabe, a quitanda, o japonês, o sitiozinho dele... Sou a favor, mas veja só, o supermercado deve ter uma pilha enorme de abóboras e a gente vai escolher uma linda, imensa!”.
Ela resolveu botar tudo em pratos limpos – talvez já desconfiando que seriam os únicos pratos possíveis aquela tarde: “cara, você realmente acredita nas corporações, né?”. Fez-se um longo silêncio. Não havia jeito. Mesmo sabendo o risco que corria se a informação chegasse a certas rodas, soltei: “Sim. Bom, eu sou a favor do japonês, da horta dele, da quitanda, mas acho que os tomates, as cebolas e abóboras do mega-hiper-mercado são melhores. Se eu tiver que votar num mundo quitanda ou num mundo supermercado, voto quitanda e faço campanha. Se tiver que fazer um camarão na moranga, vou no mercado”.
Clarissa ficou indignada. Não entendia como é que eu, que tinha estudado no, que tinha lido tal, agora olha só, por isso que o mundo, nossos próprios amigos, imagina o Bush então, o mensalão, acabou, acabou, acabou.
Saímos andando, cada um pra um lado, frustrados, magoados e famintos. Sei lá, talvez a Clarissa tenha razão, talvez a gente devesse fazer alguma coisa, talvez um outro mundo seja possível. Nosso camarão na moranga, definitivamente, é que não.
Texto muito bom, e vcs estão se falando novamente?
ResponderExcluirJuro que adoro camarão a moranga! rsrsrsrsrs
ResponderExcluirtexto perfeito
ResponderExcluir