sábado, 3 de janeiro de 2009

A zona do agrião.

Parado, com a colher suspensa sobre a bancada de aço inox, o sujeito atravancava minha passagem. Ia enfiá-la no pote de ervilhas, arremeteu, pousou-a na bandeja de beterrabas, levantou uma rodela, soltou-a, duas gotas vermelhas respingaram no talo de uma couve-flor.

Fosse mais para trás, lá pela travessa do agrião, eu poderia ultrapassá-lo e chegar aos molhos a tempo de colocar azeite e vinagre antes que ele se aproximasse, mas da beterraba aos temperos é um passo e então seria eu a atrapalhar sua cadência. (Segundo a etiqueta não escrita dos restaurantes por quilo, a ultrapassagem só é permitida se não for reduzir a velocidade do ultrapassado - o que seria equivalente a furar a fila).Tudo é movimento, dizia Heráclito; o mundo gira, a lusitana roda, anunciava a televisão: só eu não me mexia, preso diante da cumbuca de grãos de bico com atum. Fiquei irritado. Aquele homem hesitante estava travando o fluxo de minha vida, dali para frente todos os eventos estariam quinze segundos atrasados: da entrega desta crônica ao meu último suspiro.

Limpei a garganta, o sujeito olhou para mim e foi então que o inusitado se deu: ele sorriu. Meu mau-humor foi expulso pela vergonha. Ali estava eu, buzinando mentalmente, ultrajado pela subtração de um punhado de segundos.

Qual a pressa? Só colocaria o post no dia seguinte, o último suspiro, quanto mais distante, melhor, esse foi um ano bom, logo começam a ligar os amigos para nos encontrarmos e combinar nosso carnaval, ou que o mundo acabe, dependendo do que acontecer com a economia -- e mesmo que venha a hecatombe, não seria mais uma razão para trabalharmos em paz na composição de nossa salada? Talvez haja recessão em 2009 e há uma chance em 50 milhões de que a Terra seja engolida por um buraco negro quando ligarem o acelerador de partículas na Europa, mas ali estávamos nós, dois homens, decidindo entre dezenas de possibilidades de agraciar nossas papilas gustativas nos próximos minutos. No fim das contas a vida é isso aí, escolher entre ervilhas e beterrabas, antes que chegue o último suspiro e sejamos nós o alimento de outras criaturas. Qual a pressa?

O sujeito serviu-se de três rodelas de beterraba e passou-me a colher. Eu sorri, ele sorriu de volta. Pensei em desejar-lhe um ótimo ano novo, mas era tarde, dizer bom apetite, mas era cedo: a mulher atrás de mim limpou a garganta, dando a entender que se eu não fosse me servir de nada era melhor sair da frente, em vez de ficar ali, com a colher suspensa sobre a bancada de aço inox, a contemplar os legumes e atravancar sua passagem.

Um comentário:

  1. de fato é desprecivel esses tipos de pessoas que ficam escolhendo que pegar, enquanto tem uma fila enorme...

    Rita, RJ.

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