Faz anos que ela vende chicletes, num cruzamento aqui perto de casa. Quando começou, era quase um bebê. Loirinha, de cabelos cacheados, conseguia dos motoristas não só uns trocados, mas alguns sorrisos, uma palavra simpática, vez por outra até, dos mais culpados, um carinho na cabeça.
Por um tempo, deu uma sumida. Então, semana passada, voltou. Tomei um susto: a menina cresceu. Ainda não é uma mulher, embora criança já não a descreva. Está ali naquela zona cinzenta, ou rósea, (negra?), onde convivem bonecas e sutiãs. Ou deveriam conviver, pois a menina não tem nem um, nem outro. E, se a falta de bonecas era um triste índice da nossa miséria social, a ausência do sutiã obriga-nos a encarar fantasmas ainda maiores. Mesmo que pelo retrovisor, como faz o senhor do Corola. Quando ela ofereceu chicletes, ele recusou, sem olhá-la, mas assim que ela sai, em direção ao carro de trás, ele cola as pupilas no espelhinho e observa o corpo que se afasta – suas ideias oscilando entre Nabokov e Gilberto Freyre: “O corpo jovem, os peitos arrebitados, a necessidade, ela ali, a toda hora, andando pelos carros, cruzando todo tipo de homem, alguém há de… Será que uma hora ela não… Imagina só ela…”. Então cai em si e mexe no rádio, aflito, tentando mudar de sintonia.
Nem todos a encaram com peso na consciência. Os dois garotos no Golf, por exemplo, conversam tranquilos, fitando-a. “Aquela ali, com um banho, cê encarava?!”. “Ô!”. Depois riem o riso livre e obsceno dos homens sem crise.
A senhora no ônibus tem raiva nos olhos. “Desavergonhada! Por que não cobre esse corpo? Essa barriga de fora… Tá provocando! Depois reclama se acontece alguma coisa. Vende chiclete? Tá bom! Isso aí é só fachada, eu bem sei o que ela quer…”
O que quer a garota? Eu não sei. Desde que se viu por gente, anda entre os carros, mendigando moedas, às vezes recebendo um sorriso compassivo, uma palavra simpática de um motorista mais culpado. Até outro dia, era o cocô do cavalo do bandido. (Um cocô loiro, é verdade, o que a colocava no grupo de elite dos cocôs, mas ainda assim, cocô). Então, de uma hora pra outra, sem ter que fazer absolutamente nada, dá-se conta de que seu status no mundo mudou. Lumpen Lolita, ela é simultaneamente o último degrau da sociedade e a fatia mais desejada: menor abandonada, descalça e analfabeta, ninfeta loira, de seios arrebitados. O que ela vai fazer com isso?
Torço sinceramente para que engorde, o mais rápido possível.
Sem ofensas, enquanto os cruzamentos forem apenas divertimentos biológicos, as Lolitas serão menores abandonadas, descalças e analfabetas, ninfetas loira, de seios arrebitados.
ResponderExcluirMartinelli,
ResponderExcluirQueria conversas da vida e ‘desvida’ com você. Suas percepções são tão sinceras, tão lineares. Sinto culpas pelas calçadas-que-não-dirijo e diante de coisas assim, das meninas e mulheres e gentes que são indiferentes nas situações da vida, me sinto induzido – subitamente e sem escolha, à reflexões como essa que você teve e escreveu. Quero acreditar que ela vai ouvir uma palavra, que eles todos ouvirão. E eu digo se puder e estiver nas situações.
Abraço.
É a triste visão da verdadeira miséria humana…muito me dói a inexistência de uma sustenção social para aqueles mais necessitados.A miséria não é só da garota, mas daqueles que ignoram sua existência (espírito miserável).
ResponderExcluirNa situação acima, já se vislumbra outro atentado anunciado contra a dignidade da pobre criança, talvez pela força, talvez pela mentira.
Os homens em sua arrogância e natural libidinosidade, não enxergam a inocência, e tão pouco estendem a mão a uma necessidade….com o tempo e na primeira oportunidade corromperá mais uma criança no mundo, jogada ao léu desde pequena.(Que culpa tem ela da sua existência e carência infelizmente natural)
Adorei o texto (como sempre…) e fico sensibilizada com a sua percepção.
ResponderExcluirNão consigo entender o ser humano e porque agimos dessa forma…
Obrigada por escrever e publicar pra gente!!!
Bjos
Quase chorei lendo sua reflexao sobre a menina-moça, qual destino será o dela ? Viver mendigando, se prostituindo ou arranjar um trabalho de empregada doméstica, de qualquer jeito explorada, se nao pelos pais, pela patroa abusada e sem coraçao. Ela e muitas outras na mesma situação, bonitas ou feias, nao podem esperar muito de ninguém.E o que podemos dizer dos garotoes descritos por você, dentro de seus carros e esbanjando o lado sombrio (medíocre) de quem nao respeita a mulher, seja quem for ou a idade que tenha, porque nao tiveram berço. Nao sei o que você quis dizer no final de seu texto, o que tem a ver a gordura no caso ? Ou estava querendo dizer que o corpo dela devia protegê-la dos olhares voluptuosos, e que estando gorda e sem formas definidas se livrará do mal que podem fazer os machos ? No começo pensei que falava sobre pedofilia, depois percebi que o contexto é mais social. Onde você quer chegar ?
ResponderExcluirAdorei essa é a nossa realidade bjs
ResponderExcluircruel realidade onde uns acham que a culpa é dela, outros querem se aproveitar sem culpa, alguns antes de ceder aos impulsos trocam de estação… mas infelizmente são poucos os que entendem que fazemos parte desta realidade, e que atitudes como as descritas por mel, de nada ajudam a encontrar uma solução para esta questão, questão esta que é apenas mais uma dentre a porção que os brasileiros devem se apropriar. parabéns Mel, por nos fazer ao menos falar a respeito. espero que o falar e refletir acerca já seja alguma coisa. grande abraço, ursula
ResponderExcluirReal e triste. Ótimo texto!
ResponderExcluirÓtimo texto, Martinelli!! Depois de refletir sobre ele percebi o significado do título. Você não fala somente do cruzamento de duas vias, mas de muitas outras juntas e que simbolizam na verdade a inversão de valores da nossa sociedade. A pobreza, a diferença de classes sociais, a falta de educação, a prostituição, a pornografia, a negligência, o preconceito, a falta de identidade, a falsa generosidade, e tantas outras coisas podemos ir relacionando com essa pequena cena que descreveu, pois são muitos os problemas da humanidade e estão em todos os lugares, só não vê quem não quer. Como outros comentaram, espero que isso não fique só no pensamento dos seus leitores, mas que se inspirem em seus maravilhosos textos para partirem para a ação em mudar esses cenários – para melhor, é claro. Eu já coloco em prática esse ideal, mas todos juntos somos muito mais fortes.
ResponderExcluirRealmente isso e um reflexo do famoso “calor humano brasileiro”.
ResponderExcluirFamoso calor humano que diz ao mundo a fora como o Brasileiro e “simpatico e acolhedor”.
E dale copa de mundo,ole ole,carnaval e suposta “alegria”.
depois desse texto só tenho vontade de cantar: “and be yourself is all that you can do…”
ResponderExcluirSensacional!
ResponderExcluirÊ Mel, fazendo a sua parte e ainda cutucando a gente!
ResponderExcluirA estrada que começa no seu texto acaba em “Baixio das Bestas”.
Porque no cruzamento do homem – mais homem, em sua armadura motorizada – com a máquina, o que sobra são os instintos mais vis?
Torcer pra que a menina engorde é também torcer o pescoço pra aquele índice da nossa miséria que é o mais publicizado, mas nem por isso menos faminto.
Myrilene com a ajuda do Ricardo
ResponderExcluirFico nos faróis quase todos os dias, no calor ou no frio, na chuva não, ninguém compra, abrir a janela molha o carro.
Zelão, meu namorado, encontrou o teu texto colado em uma das colunas do viaduto de São Cristóvão (quem teria colocado? e por quê?). Leu para mim, ele fez até o quarto ano. Só não gostei do desejo dele, nem o Zelão, de torcer para eu me tornar gorda. Dos babacas me saiu bem, vou do gesto aos palavrões, dos velhos lembro-me do escroto do meu pai e tenho nojo, da senhora tenho dó.
Vou levando a minha vida que me parece até normal. O Zelão e eu vamos ficando, pegando o sopão que servem na praça 15 e nas proximidades, quando arrumamos um dinheirinho atacamos a “mardita” que nos dá os momentos de felicidade.
Obrigado pelo seu texto e pede para o pessoal dos carros que pelo menos olhem e nos cumprimentem. É bom também.
Oi? Isso foi escrito/ditado por ela?´
ResponderExcluirEsse post virou um tipo de tapa-na-cara e eu levei foi um soco no estômago.
Triste e ainda me contento com a percepção dela, se for ela.
Muito bem, Ricardo!
ResponderExcluirSua percepção, e a elegância da escrita são impressionantes. Em tempos obtusos seu texto é uma dádiva. Obrigada.
ResponderExcluirSilvana Seabra
Texto muito real...
ResponderExcluirTriste realidade. Chega a doer esse tapa na cara de quem acaba tomando cenas como essas como o pano de fundo do cotidiano nas grandes cidades.
ResponderExcluirMas lendo seu textos tenho certeza de que esse mundo ainda tem jeito. Obrigada por renovar minhas esperanças nas pessoas.
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Status da Coprofagia
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Cocô Lumpen Lolita
Cocõ ninfeta loira
Cocõ menor abandonada
Cocô do cavalo do bandido
Cocô gordo
outro dia cheguei na casa de uma prima e vi sobre a mesa varios livros, entre eles dois livros de oitava serie, um de lingua portuguesa. quando comecei a foliar o livro minha prima disse: “é apenas um livro de oitava serie”. sem largar o livro respondi:”foliando livros do ensino fundamental eu conheci muita gente inteligente: luis fernando verissimo, por exemplo”. e não deu outra, antes de chegar no meio do livro deparei com uma figura com um alto grau de espontaneidade, que capita com minucia os acontecimentos cotidianos com uma linguagem tão simples e moderna, democratica, sem o egoismo dos intelectuais “eruditos”, que como os grandes crônicas inicia a escrita com um conteudo pessoal e no decorrer do texto universaliza a ideia sem a preocupação de fornecer uma lição de vida. até o nome era facil decorar: Mel Martinelli. melhor parar com os entusiasmados comentarios ou vão me ter por bajulador oportunista. parabens pelo humor e pela sinceridade imparcial na escrita.
ResponderExcluirWágno
ResponderExcluirO correto do verbo é “folhar”, que vem de folhas, páginas.. Elogie sempre os trabalhos bons que vc vê.. Se te tocou, quem escreveu merece. Parabéns Mel, vc é único!
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirOii Mel tudo bem,lembra de mim? É a Simone (''escritora'') do blog: ''Além da Imaginação'',e estou passando por aqui para te dizer mais uma vez que adorei o seu novo layout e as novas postagens! Parabéns pela criatividade.Beijos :)
ResponderExcluirEu só queria me deparar com nabokovetas no meio literário – mas é triste saber que em cada esquina existe uma. Destino de uma sociedade “em ascensão”.
ResponderExcluirOi!
ResponderExcluirCheguei até a sua escrita através do Digestivo. Que delícia a descoberta da sua existência e dos seus textos!
Ave Martinelli!
De Belo Horizonte, um grande beijo!
Sua, agora assídua, leitora!
Maria Cláudia
infelizmente ela acabará em um puteiro. é só questão de tempo. infelizmente…
ResponderExcluirMe lembra de Capitães da Areia,descrição de Dora (é até loira !) feita pelos ricos que moram na Bahia “de cima”.
ResponderExcluirEsse é o mundo que criamos e recriamos. A escravidão não sumiu, se reinventa e fica cada vez mais sutil, menos escandalosa, mais divertida para alguns e pervertida para outros.
ResponderExcluirNossa senhora, como voce escreve bem!
ResponderExcluirSorte dos leitores.
Mel Martinelli, como sempre surpreendente em suas junções de palavras e suas formas criativas e inteligêntes de dar vida a elas. Consegue ser magnificamente convergente… tão talentoso. Minha adimiração vem lá dos tempos de “Estive Pensando”. A ele quem eu devo minha fascinação pela escrita, pois foi com suas crônicas que eu passei a gostar e me aprofundar numa paixão camuflada que existia dentro de mim. Hoje não sai dos meus planos, dedicar-me ao jornalismo. Grande beijo!
ResponderExcluirAi cara, genial como sempre! Quando eu crescer, quero ser igual a você ou ter pelo menos um milésimo do seu talmento em escrever de forma tão criativa!
ResponderExcluirNão tenho mais o que comentar, seu talento me cala.
Olá! Muito obrigada pela visita e comentário!
ResponderExcluirNossa vc já foi casado...?
Bjs
*--*
Martinelli, É difícil viver numa sociedade que ainda tem “cocôs do cavalo do bandido”. E o que fazer? Vivemos entre tantas normas, sejam elas certas ou sofismas (é errado dar esmolas, comprar balas, etc, etc).
ResponderExcluirNa época em que eu fazia cursinho na Paulista, víamos uma senhora que ficava o dia todo sentada e colocava as crianças para vender as balas. Dava algum trocado a cada uma no fim do dia, esporro em outras que pouco vendiam… Enfim, situação difícil, a deles e a nossa.
Também torço para que a loirinha do cruzamento engorde. O maior problema é que, nessa idade, elas engordam para emagrecer 9 meses depois. Mais triste ainda.
Grande abraço e parabéns pelos textos!
“É triste” virou aquele “e aí?” que a gente usa pra iniciar aquelas conversas vazias do cotidiano – seja no msn ou no elevador. Essa expressão já se acomodou nas bocas como estas situações já se acomodaram na vida. Virou lugar comum, tipo “destino”. Deixou de ser absurda pra ser “triste”. É a vida..?!
ResponderExcluirClaro que é triste pensar na vulnerabilidade dessa menina, saber do caminho de tantas outras, torcer “para que ela engorde” como forma de solução. Mas é bem mais que isso. E é aí que a gente entra – ou deveria entrar.
Gostei muito do texto, Mel!
Qqw, Mel.
ResponderExcluirlehgal o texto e tudo mais (que já te disseram)…
rsss
,mas vc apanhou da tua Mãe?
e do meu ponto de vista…. sobre está menina quase nada pode se fazer…
a mulher que brotará dela ainda pode ser beneficiada….
eu acredito!
O brasil pode mais!
um abraço!
É triste, porque é uma realidade lamentável.Ótima crônica e adorei a forma que observa isso tudo.
ResponderExcluirIsto está presente em nosso dia dia,são poucos que vem dessa mesma forma que você.
Mas então? Comprou os chicletes dela?
ResponderExcluirEntão Mel, esse é um dos “Brazis”… que todos estão vendo pela janela, retrovisor, óculos escuros, olho nú… nú como a realidade que é crua apenas se não refletirmos a respeito. O que acontece com a maioria dos “passantes” que estão entorpecidos por tanta violência, imoralidade etc..etc…
ResponderExcluirParabéns… vc reflete bem e os leitores respondem prontamente.
Minha opinião. O único caminho para a solução desses defeitos na “trama social” é a Educação da infância, tanto para quem assiste quanto para quem está nos cruzamentos, parafraseando João Bosco, serão nossas crianças os malabaristas adultos do Asfalto na próxima geração??
abçs e parabéns pela sensibilidade!
Martinelli, não resistí e peguei uma carona. Serviu de inspiração.
ResponderExcluirParabéns pelo texto.
Um abraço forte