terça-feira, 21 de julho de 2009

Blowing in the wind

Meu pai nunca entendeu que eu e meu irmão não tínhamos a mesma idade que ele. Isso não se restringia a nós nem mudou com o tempo: até hoje ele conversa com uma criança de três anos de igual para igual, o que faz com que elas o adorem, como se o tom as promovesse a outro patamar. Quando você é filho, no entanto, a coisa é um pouco mais complicada.

Era domingo e não sei por que cargas d’água meu pai resolveu nos levar ao Pico do Jaraguá. Não era o tipo de programa que fazíamos nos fins de semana -- um sim, um não -- que passávamos com ele. Íamos a restaurantes, bares, às casas de amigos dele, ao cinema ou ao teatro. Aquele, contudo, era um domingo atípico, tanto é que a Julia, minha meia irmã (filha do meu padrasto), também estava conosco.

Lembro-me de estar deitado no banco de trás da Brasília, com as pernas esticadas por cima do encosto e a cabeça pendendo entre os bancos da frente, próxima à base do freio de mão. Hoje em dia, se a polícia pára um carro e flagra uma criança nessa posição, o motorista deve perder a carta, talvez até guarda dos filhos, mas estávamos em 1996 e o mundo era outro, (tá nem tanto, mas era bem diferente dos dias de hoje. Afinal o Michael Jackson estava aqui. Ok! Vamos ao post), não se usava cinto de segurança nem protetor solar, as pessoas não andavam por aí com garrafinhas d’água, como se fosse o elixir da vida eterna, fazíamos cinzeiros de argila para os pais nas aulas de artes e o colesterol era apenas uma vaga ameaça de gente paranóica, como a CIA ou a KGB, dependendo da sua visão de mundo; de modo que eu seguia feliz, estrada acima, vendo as árvores passarem de cabeça para baixo, lá fora.

Foi o Dado, meu irmão, sentado próxima a janela da esquerda, quem deu o alarme: “Ó lá ela chupando o pinto dele!!!”. A Julia pisou na minha barriga, passou por cima de mim e também grudou a cara na janela, eu levantei correndo, mas só cheguei a tempo de ver uns vultos dentro da Variante bege parada no acostamento. O Dado jurava ter visto direitinho: o cara pelado, uma mulher chupando-lhe o pinto. Nós três começamos a pular e gritar no banco de trás, como chipanzés amotinados. “Chupando o pinto!”, “Hahahaha!”, “Chupando o pinto!”, “Hahahaha!”, repetíamos, sem acreditar que havíamos passado tão próximos daquele evento inencaixável na ordem geral das coisas. A gritaria estancou de imediato quando meu pai, com a naturalidade de quem discute a situação com senhores de cinqüenta anos, perguntou: “o que é que tem?”.

Até aquele segundo, em minha vida, chupar pinto não tinha nenhuma relação com a sexualidade humana, o prazer, o afeto. A frase “chupa meu pinto!” pertencia ao terreno das ofensas, ao jargão do futebol, como “prensada é da defesa”, “gol só dentro da área”, e “vou te encher de porrada” – essa sim uma ameaça que poderia ser cumprida. Chupar o pinto era metafórico, como “cospe e sai nadando” ou “vai ver se eu estou na esquina” e jamais tinha passado por nossas cabeças (eramos crianças, tinhamos entre 10 e 7 anos) que alguém de fato fizesse aquilo -- e por que faria?!

“Não sei do que vocês tão rindo tanto”, continuou meu pai, sério. Eu só consegui gritar o óbvio, de pé no assento de trás, metendo o corpo entre os bancos da frente: “pai! Ela tava chupando o pinto dele!”. Meu pai abanou a cabeça. “Mel, chupar pinto é uma coisa muito normal. E saudável. Todo casal faz isso” – ele disse, e acreditem: era só o começo. O pior, o que subverteu todo o arcabouço conceitual construído até meus nove anos, o que provavelmente faria com que fogos de artifícios fossem vistos nos dois hemisférios do meu cérebro, caso estivesse num desses aparelhos de ressonância magnética, o que, dada a intensidade, provavelmente fixou toda a história em minha cabeça, desde a posição em que me encontrava no banco da Brasília até a cor do céu, quando chegamos ao mirante, lá no alto, viria a seguir: “Normal, sim. A Juliana chupa meu pinto. A sua mãe chupa o pinto do marido dela. Sua avó chupa o pinto do seu avô. A tia Lurdes chupa o pinto do Augusto, a professora Carla chupa o pinto do Josué, ah!, os homens que namoram homens então, como o Pedrinho e o Ivan, chupam muito o pinto um do outro. Todo mundo que namora faz isso. E é muito gostoso. Não tem porque rir.”

Chegamos ao Pico do Jaraguá, descemos do carro e vimos o pôr do sol. Eu olhava a cidade lá longe e só conseguia pensar que por trás de cada janela, dentro de cada carro, debaixo de cada teto, atrás de cada porta havia pessoas que chupavam ou eram chupadas, meus pés pisavam sob um planeta onde dois bilhões e meio de seres humanos colocavam os pintos dos outros dois bilhões e meio na boca. Talvez fosse o vento, ou a memória tenha inserido o áudio mais tarde sobre a imagem, mas o som que eu ainda ouço, lá no alto, é equivalente ao de um canudo do tamanho de um prédio puxando o último gole de um copo gigante de milk-shake: sssrrrrrrrlllllllllllluuuuuuuuurrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrp!Na volta, ninguém falava nada. Entramos em casa correndo, com os olhos arregalados. Não tão arregalados quanto ficaram os de minha mãe, meu padrasto e mais uns dois casais de amigos, que tomavam vinho e comiam alguma coisa, quando desandamos a falar: “Mãe! Mãe! É verdade que você chupa o pinto dele?!”. “A vovó chupa o pinto do vovô?!”, “A minha avó também, pai?! A minha avó também chupa pinto?!!”, “Todo mundo?! Todo mundo chupa pinto?!”. “Mãe, mãe, quando eu crescer eu também vou ter que chupar pinto?!”. “Com que idade?! Com que idade começa a chupar pinto, pai?!”.

A última cena de que me lembro nesse dia é vista do alto da escada, de onde eu estava bisbilhotando, já de pijama. Havia taças vazias e pratos sujos na mesa, os casais tinham ido embora. “Mas será que você não entende? Eles são crianças!”, dizia minha mãe ao meu pai, pelo telefone, aparentando mais cansaço do que raiva na voz. Não lembro com que sonhei naquela noite. Mas com certeza fiquei com aquela duvida durante uns 5 ou 6 anos até vocês sabem!

Um Abraço...

20 comentários:

  1. Ricardo Almeidajulho 22, 2009

    Cara que louco!! Seu pai é parecido com sua mãe! pelo menos nas histórias.

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  2. Toda mijada com essa história!! rsrsrsrsrs, muito boa... 8P

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  3. André Cistojulho 22, 2009

    Oi Mel!
    Parabéns pelo texto.
    Quase morri de tanto rir!

    Você me fez lembrar do dia em que a minha mãe disse ao meu irmão - no caminho pra escola - que ela gostava de pinto, sim, e que se não gostasse ele não teria nascido.

    Abraço.

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  4. Sensacional, não parei de rir, não pode ser verdade essa história.

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  5. Belo ritual de passagem! Rsrs.

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  6. Adorei esse post! Ta muito elaborado! e seu pai é uma comedia tanto quanto sua mãe!

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  7. Cezar Cristovãojulho 23, 2009

    cara seu pai é igual a sua mãe, ou pelo menos um pouco mais engraçado. falar em chupar pinto pra 3 crianças e ainda afirmar que é normal. só sendo anormal né!

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  8. menino juro que não acreditei nessa história, é surreal!

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  9. tendo lido todos os seus posts, seu pai é o maximo...só pode ser verdade.
    morri de rir, muito bom seu texto...tal pai tal filho

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  10. Sensacional.
    Além da história ser excelente, você escreve de um modo muito legal, que a torna ainda melhor.

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  11. Já tinha lido esse seu post dias atrás, numa dessas tardes em que você quer fazer uma pausa e ler algo interessante e divertido antes de abrir mais um e-mail chato do trabalho. SENSACIONAL!!!
    Foi tão hilário que tive que ir rir no banheiro para os colegas de trabalho não perceberem que eu estava matando trabalho, rs.
    Aos mais chegados mandei o link do blog e pedi para lerem a crônica. Foi inevitável: passei a ouvir risadinhas e um burburinho se alastrou pelo departamento. Uma pena não ser possível empregar o famigerado ctrl c ctrl v para mandar às amigas por e-mail, mas, enfim... a vida tem seu charme. Abraços,

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  12. Esse, certamente, foi um dos seus melhores textos. Chorei de tanto rir. Vou adicionar o link novo no blog.
    Um beijo! :)

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  13. Mel, fiquei um tempo sem visitar seu outro endereço, ainda bem que tinha o link pra cá.
    Como quase sempre (tirando algumas vezes em que o assunto é menos engraçado) morri de rir lendo cada pedacinho desta história. Lembrei de quando era criança e ia, raramente mas ia, ao Pico do Jaraguá. Aquilo era meio bizarro pra mim, afinal, me perguntava sempre porque me matar de cansaço só pra ver a cidade lá de cima?....rs....Mas esse seu relato é de chorar de rir mesmo. Hoje sou mãe, e sei como as crianças perguntam mesmo. Porque quando somos crianças pra gente é absolutamente normal soltar perguntas toscas...rs. Penso também como seria minha vida se não tivéssemos vindo morar no interior quando tinha 6 anos. Se eu tivesse ficado no RJ talvez teria tido a chance de conhecer pessoalmente alguém brilhante como você. E divertido, o mais incrível. Bom humor é tudo. Beijo, Marjorie.

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  14. Katia Migueljulho 24, 2009

    kkkkkkkkkkkkkkkk, jura que isso aconteceu? Eu não acredito.

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  15. Cara eu axei teu blog por acaso, e me amarrei. Envie pra todos do meu escritorio1 Essa história dava um filme!

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  16. Loucura, loucura, loucura! Maior comédia. Vc é demais...

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  17. Sandra Diasjulho 26, 2009

    Caramba isso é loucura falar deste assunto com 3 crianças! É o cumulo do absurdo.

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  18. acho engraçado que nesse blogs masculinos, quando o autor faz um comentario que soaria chulo (mas não é) a mulherada cai de boca (sem trocadilho com o texto) e se mostram todas euforicas...vai falar isso ao vivo pra uma delas ai de cima...com certeza chama a policia e diz que é assédio !

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  19. Hum......Temos dois ouvidos e uma boca....Pena que temos duas mãos também, e em tempos de internet, um teclado, duas mãos.......acabam fazendo coisinhas toscas......Mel, vc é ótimo! Adoooooooooro seus textos......Aliás, talento vem de família, toda.....seu pai, vc, seu irmão......beijos!

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  20. Cristiana Torquatojulho 27, 2009

    Sensacional!!!!! Pode ter certeza que lendo seu texto, me senti lá, com vocês! Até as vozes das crianças vieram a minha cabeça! perfeito! Parabéns!

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